Pense em cucas, sacis, capelobos, lobisomens, sereias, botos e outras criaturas mitológicas do folclore brasileiro sem aquela roupagem tatibitate de ‘orgulho nacional’, ‘precisamos mostrar nossa identidade para o mundo’ e todo esse discurso pseudo-nacionalista. Pense neles apenas como criaturas bacanas para ser utilizadas em uma história de fantasia. Pois é. Foi exatamente assim que Felipe Castilho pensou quando construiu seu romance “Ouro, Fogo & Megabytes” (Editora Gutenberg, 286p.): sem encher seu saco e dizer que você precisa engolir folclore nacional só porque você é brasileiro e tem que ter orgulho disso, mas porque pode ser uma alternativa divertida pra caramba.

A história – a primeira de uma série de quatro livros – gira em torno de Anderson Coelho, um geek interiorano de 12 anos de idade que tem como único objetivo de sua breve vida ser o primeiro colocado no jogo de MMORPG Battle of Asgaroth. E ele está quase lá, em segundo lugar, perdendo apenas para o misterioso Esmagossauro. E todo esse tempo sentado em frente ao computador faz com que Anderson seja um desastre em qualquer outro tipo de atividade, sobretudo as físicas. Depois de uma aula de Educação Física que resulta em uma suspensão de três dias, o garoto se desespera: como contar para os pais que foi suspenso?

Um homem batendo à sua porta pode ser a alternativa para Anderson sair ileso: Zé, um anão sorridente a la Nelson Ned, diz aos pais do garoto que ele foi convocado para um campeonato de Matemática em São Paulo, que cobrirá os três dias de suspensão do garoto. O anão, no entanto, faz parte de uma Organização (com ‘O’ maiúsculo mesmo) que pretende dissolver os planos do magnata Wagner Rios, multimilionário que vem usurpando os recursos da natureza e utilizando a Mãe D’Ouro, uma elemental do fogo. A Organização precisa de Anderson para invadir as redes de computador das empresas de Rios e orquestrar um ataque que possa desestabilizar os planos do homem.

A partir daí, Anderson enfrenta um milhão de situações diferentes: conhece criaturas fantásticas, duela com tantas outras e vai aos poucos aprendendo tudo o que nunca soube sobre problemas ambientais e a influência dos homens na desestabilização da natureza.

Em primeiro lugar, tenho que dizer que esse é um livro muito competente. Já falei lá em cima e repito: Castilho conseguiu utilizar a roupagem do folclore sem cair no discurso nacionalista chato e forçado que muita gente utiliza quando escreve sobre folclore nacional. Ele conseguiu fazer um texto leve e agradável, que não soou ‘criaturas fantásticas brasileiras em uma fórmula de roteiro norte-americano’: Anderson é um moleque que mora em uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, mas não é apaixonado pela roça ou pelos livros; gosta mesmo é de ficar enfurnado no quarto jogando RPG. É um garoto comum dos tempos atuais, que reclama de internet 3G e enfrenta os valentões da escola com a perícia de um desengonçado. Curti muito a construção do personagem, porque ele pareceu extremamente real: não é ingênuo e, apesar da pouca idade, já tem muitas opiniões sobre tudo o que o cerca. Acho que o grande mérito de Anderson é esse: não ser um pamonha. Ponto para o autor.

Outra apropriação muito bem feita foi o das criaturas folclóricas: desde o Patrão, um saci rabugento, passando por Zé, um meio-caipora ativado por aguardente de açaí, passando por meio-sereias, botos, lobisomens-guará, capelobos-capangas, o boitatá (o boitatá *-*) e a Mãe D’Ouro, todos caíram muito bem na narrativa e conseguiram se encaixar muito bem em suas funções dentro da história.

Quanto ao enredo, não tenho nada para reclamar: achei que foi bastante consistente do início ao fim. O clímax final é incrível, que me fez devorar quase 150 páginas em umas duas horas só para saber o que raios ia acontecer no final – que deixa qualquer filme de ação no chinelo com o tanto de tiros, helicópteros e UM BOITATÁ SUBINDO POR UM PRÉDIO! Os acontecimentos são passados com a velocidade certa para que possamos digeri-los sem que fiquemos perdidos; revelações são muito bem encaixadas em seus devidos lugares, e não percebi nenhuma ponta solta muito grave ao final da narrativa. Parece que tudo o que ficou em aberto ficou de forma consciente, para que fiquemos ansiosamente esperando pelo volume dois da história.

Um dos principais pontos-chave é o apelo educacional e, ao mesmo tempo, divertido que o livro possui. É uma história bem bacana para a molecada da idade do Anderson ou um pouco mais novos, porque consegue dosar muito bem as partes mais educativas sem apelo pedagógico, tanto para as criaturas folclóricas quanto para as questões ambientais colocadas no texto, além de temas como manipulação da mídia e desigualdade de camadas sociais diferentes. Também é um ótimo livro para adultos, exatamente por tratar desses mesmos temas. É aquele tipo de livro que passa mensagens para qualquer idade.

A capa é incrível, e as ilustrações internas também. Parabéns ao Octavio Cariello pela capa belíssima – com uma das cenas mais sensacionais do livro, vale ressaltar – e pelas ilustrações internas do Thiago Cruz. Não sei se foi ou não a intenção – acredito que sim –, mas as ilustrações me lembraram bastante das xilogravuras do Nordeste utilizadas na literatura de cordel. Intencional ou não, ficaram excelentes.


Inevitável falar sobre a comparação que todo mundo faz com Percy Jackson e Os Olimpianos. Acredito que tenha alguma relação, mas é aquela de parâmetros comparativos que as pessoas precisam ter para avaliar a qualidade de uma obra. Eu, particularmente, acho Percy Jackson um livro ‘ok’, que não me empolgou muito a continuar lendo. Se essa comparação é mesmo válida, acho que quem gosta de Percy com certeza vai adorar ‘Ouro, Fogo & Megabytes’. Para mim, está uns dez degraus acima, sem nem pestanejar.

Se pudesse apontar um problema dentro do livro, seria a revisão. Não é a pior que já li, não mesmo, mas há algumas coisas que deixam um pouco a desejar. Falta de quebra de linhas de uma cena para outra, algumas vírgulas fora do lugar, outros pronomes desnecessariamente repetidos... coisas que uma olhada para uma segunda edição podem ser facilmente resolvidas. Nada que atrapalhe o produto final da leitura.

Enfim, acho que é um livro que todos devem ler. Não pra fomentar a literatura nacional ou ter orgulho de lobisomens e sereias no acervo de criaturas mitológicas das nossas terras tupiniquins – não que isso não seja motivo de orgulho, é claro que é – mas para aprender algumas coisas que podem ser modificadas, sobretudo acerca da natureza. E para se divertir, é claro, como todo bom livro de aventura deve ser. Porque não é todo dia que você vê um boitatá subindo por um prédio de São Paulo.

Abaixo, o (sensacional) booktrailer do livro. Confiram: