Meu professor de História do Ensino Médio era da teoria de que nós, seus queridos estudantes, nos fascinávamos mais pela Segunda Guerra Mundial do que por qualquer outro momento histórico pelo fato daquele ter sido o último acontecimento grandioso da História. Ele dizia: ‘vocês deveriam prestar atenção na Revolução Industrial, na Revolução Russa e na Revolução Gloriosa. Elas são muito mais divertidas’.

No entanto, percebo hoje, depois de dois anos longe do pátio do Ensino Médio, que a Segunda Guerra Mundial não é um assunto que seduz apenas adolescentes. Seu tema, exaustivamente exposto em filmes, séries, literatura e arte nos faz pensar sobre um período tão sombrio para a humanidade: segregação racial injustificada, uso de cobaias humanas para testes de laboratório, assassinato em massa em campos de concentração e outros sem-número de atrocidades que fazem com que nós sempre paremos um minuto para refletir sobre a humanidade e sobre os limites dela. Livros como ‘A Lista de Schindler’ e ‘O Diário de Anne Frank’ e filmes como ‘Queda! – As Últimas Horas de Hitler no Poder’ são apenas os exemplos mais famosos e cultuados desse período que nunca deve ser apagado ou esquecido pelo mundo.

Philip K. Dick, autor de ficção científica famoso por escrever histórias como ‘Do Androids Dream of Eletric Sheep?’ – adaptado pelas mãos de Ridley Scott no cult ‘Blade Runner – O Caçador de Andróides’ – e ‘The Minority Report’ – dirigido por Steven Spielberg – vai além. Ao invés de nos mostrar um romance histórico tradicional e discorrer sobre as consequências que a guerra trouxe para a humanidade, ele faz um panorama diferenciado sobre o mundo após a 2ª Guerra: e se os vencedores fossem os japoneses e alemães, como estaria o mundo?

Dick se preocupa em configurar um cenário político e cultural de forma a não deixar nenhuma ponta solta. O livro, breve – com pouco mais de 300 págs na edição da editora Aleph –, consegue cumprir bem o papel de ser convincente: tudo parece estar em seu lugar certo, desde as pessoas e os acontecimentos até a forma exacerbada com o qual certos conceitos nazistas foram espalhados pelo mundo.

Um trecho que não saiu da minha cabeça, do momento em que o li até agora, trata de uma cena onde um americano – que, no mundo proposto por Dick, é inferior a um ariano ou japonês, mas superior a um negro ou judeu – se questiona sobre os preconceitos da sociedade em que está inserido. O que mais surpreende é que, ao mesmo tempo em que o personagem se sente injustiçado pelos arianos e japoneses pelo fato de ser menosprezado por eles, pensa no disparate que seria um escravo negro, carregador de malas, dividir o mesmo espaço que ele no elevador social do prédio. Um pequeno fragmento que pode nos fazer refletir muito sobre nossos próprios preconceitos e nossa própria visão de mundo.

Enquanto o cenário e a ideia propostos por Dick parecem absurdamente bem boladas, o mesmo não acontece com o enredo do livro. Somos apresentados a três histórias paralelas com alguma relação entre si: a de um vendedor de artefatos raros que foram coletados na América da Guerra Civil e sua relação com um representante de vendas japonês; a de um judeu que tem vergonha – e medo – de sua origem e por isso se esconde sob o disfarce de um americano de classe média; e a ex-mulher desse judeu, talvez a peça mais significativa de toda a história, que parte em busca do Homem do Castelo Alto para discutir com ele um pouco sobre o livro "The Grasshoper Lies Heavy".

Um pouco sobre o que o tal Homem do Castelo Alto e o livro ‘The Grasshoper...’ representam na trama. Na história, um homem sonha e escreve um livro sobre um futuro onde os alemães e japoneses perderam a guerra e a Inglaterra e os EUA são as superpotências mundiais. Esse homem, que todos conhecem pela alcunha de 'Homem do Castelo Alto', vive isolado do mundo pelo conteúdo controverso de seu livro, e talvez represente a esperança em um mundo diferente e melhor.

O enredo é confuso e o número de personagens que passeia por entre as poucas páginas do livro são muitos. Por muitas vezes tive que retornar para poder compreender o que estava acontecendo e quem era quem, e isso nunca é muito proveitoso em um livro. Os momentos em que mais aproveitei a leitura foram aqueles dos discursos internos, onde Dick mostra toda a sua veia de drogado lisérgico e expõe pensamentos que, mesmo que pareçam incoerentes para alguns, soam completamente convincentes. É quase como se ouvíssemos um homem dessa realidade alternativa gritando por socorro, oprimido pelo mundo que o assola e o pressiona cada vez mais.

Outro ponto que não achei muito interessante no livro foi o tom negativista que Dick dá a todo o seu universo. É claro que eu não acredito que um mundo onde os nazistas saem como força suprema possa ser maravilhoso, mas Dick se esforça para mostrar como as coisas estão feias e como não há o mínimo de beleza ou motivos para se alegrar. A única esperança – bem metafórica, é claro – é o próprio Homem do Castelo Alto e seu livro, que vislumbra um mundo onde os EUA venceram e tudo está bem para toda a humanidade. Mas seria essa uma premissa verdadeira? Seria o mundo nazista um mundo preto e branco e um mundo capitalista aos moldes americanos o mundo dos sonhos? Acredito que não.

Abro aqui um pequeno parêntese sobre outra interpretação que tive sobre o conceito do Homem do Castelo Alto e de seu livro.

(Dick mostra apenas o ponto de vista dos personagens em relação a um mundo sem nazismo, fantasiando a realidade e colocando-a no patamar da imaginação, como todos nós fantasiamos nossos ‘e ses...’, puxando a sardinha para os aspectos positivos em detrimento dos negativos: “e se não houvessem religiões”, “e se não tivéssemos desenvolvido o petróleo e as energias sujas”, “e se não tivéssemos desmatado as florestas”, etc. A visão que os personagens têm do mundo alternativo onde os nazistas perdem a guerra é apenas parcial e otimista; eles não vislumbram problemas ou defeitos de uma realidade alternativa quando sua própria realidade não é das mais alegres.

Mas isso sou eu viajando um pouco – ou muito. Voltemos ao livro ‘O Homem do Castelo Alto’ e deixemos ‘The Grasshoper Lies Heavy’ para os filósofos).

A utilização do I Ching é outro ponto que não me agradou. Os personagens do livro perdem todo o seu livre-arbítrio em prol da utilização do oráculo para definir quais os passos que devem seguir. É até aceitável pensar que a fé se espalharia tanto em um cenário de completa melancolia quanto o que Dick nos impõe, mas todos os personagens (ou a maioria esmagadora deles) têm no I Ching o seu porto seguro, o seu vício e, porque não, o seu Deus. É a partir das palavras dele que os personagens traçam suas estratégias e a vida sem ele é inconcebível. Não há nenhum personagem que questione o I Ching ou suas sábias palavras, e elas sempre estão certas.

No fim, o que fica d’O Homem do Castelo Alto é a utilização de uma incrível ideia com personagens não tão incríveis assim. Discursos sobre preconceito, esperança em um mundo melhor e questionamentos internos dos personagens são o ponto alto da história, enquanto o desenrolar do enredo e a apresentação da ação deixa um pouco a desejar.